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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Silêncio!

 Silêncio
Há já uma hora que conduzia sem parar; Sem destino e sem hora de chegada, Miguel estava decidido a encontrar um lugar que lhe chamasse à atenção do coração. Precisava de pensar, de por as ideias em ordem. Lembrava-se muitas vezes de uma frase que tinha lido em tempos, nem se lembrava onde mas, que não tinha mais esquecido… «Ó meu filho, a sabedoria está no silêncio»[i]… talvez a tenha lido num daqueles livros sobre “coisas“ que a sua mulher tem lá em casa. Mas na verdade, nunca aquelas palavras lhe faziam tanto sentido como naquele instante.
Na verdade, só conseguia falar consigo em silêncio.
Miguel não era uma pessoa muito dada a religiões e religiosidades populistas. Fora educado numa família cristã e católica praticante, fruto do seu Portugal e da sua cultura; cumprira os seus deveres conforme lhe era indicado pelos seus pais, no entanto, sentia a religião de uma maneira muito própria. Para ele Deus, Alá, Jeová, Buda, Krishna eram todos a mesma pessoa, mas como todas as pessoas são criadas em culturas diferentes, têm de se encontrar nomes diferentes para o seu Criador. Nas flores, nos rios, nas árvores, nos pássaros, nos outros, aí encontrava o seu Deus… essa era a sua religião, a Natureza. E por isso era no meio da natureza que se sentia melhor e onde conseguia pensar em tudo de uma forma mais clarividente.
Quando deu por si estava a passar em Sintra junto à Quinta da Regaleira, um lugar de que muito gostava porque lhe trazia boas recordações de grandes momentos que passara com a sua Mulher. Resolveu então parar e entrar.
Entrou e sem demora dirigiu-se para a esplanada das estátuas. Aliás, era a partir dali que se iniciava o caminho da visita à Quinta. Todas aquelas divindades greco-romanas ali representadas. Todo o simbolismo latente em cada canto daquele lugar mágico e extraordinário. Ainda se lembrava da história da quinta que lhe foi contada por um senhor durante uma visita que fez com um grupo de amigos e que mais tarde veio a perceber que era o Professor José Manuel Anes; Como é que aqueles dois homens conseguiram fazer aquele cenário magnífico? A própria Serra de Sintra é um lugar mágico, propício a capítulos nocturnos de qualquer tipo de religiosidade ou cerimónia pagã.  Na verdade, Carvalho Monteiro (1848-1920)[ii] e a extraordinária criatividade do cenógrafo italiano Luigi Manini (1848-1936)[iii] criaram este lugar, a quinta da Regaleira,  que é detentora de uma beleza extraordinária.
 Sentou-se num dos bancos de pedra e em seguida deitou-se. Podia observar os raios de sol que atravessavam a muralha de folhas e ramos daquelas árvores frondosas que tinha por cima de si; fechou os olhos e relaxou. Nada mais ouvia a não ser o cantar dos pássaros e a leve brisa a abraçar a folhagem das árvores. Naquele instante sentiu-se leve e livre de todos os pesos que trazia consigo; no trabalho não se sentia reconhecido pelo esforço e desempenho que tinha, o grupo dos seus amigos de longa data atravessava um período de ‘dúvida’, de ‘crise existencial’, todos pareciam doutores e se comportavam como tal em todas as ocasiões, o que o deixava triste sem saber o que fazer para ultrapassar esta questão… não pareciam os mesmos! A alegria e o entusiasmo que os caracterizava desaparecera. Ele próprio não se sentia com forças para dar a volta…
«Miguel, que se passa contigo querido?», pergunta que se lembra da sua mulher lhe fazer, cuja resposta, pronta, era sempre «Nada, querida!» e ali ficava a ‘redizer’ para si mesmo vezes sem conta a resposta que acabava por dar à sua Margarida, como que para se convencer que era realmente assim… «Nada, querida!».
De facto, entre eles, para além do que é normal entre casais, nada de mais se passava! Amava-a com todas as suas forças e todos os dias pedia que esse amor crescesse… Para ele, ela era a mulher da sua vida! Tivera outras experiências, mas nenhuma correu bem! Talvez não se sentisse tão maduro!... Talvez elas não fossem tão adultas e, ao mesmo tempo, crianças como ele desejava!
A Margarida era bem diferente; Uma mulher sólida, independente, senhora de si, mas, ao mesmo tempo, uma autêntica criança! Verdade! Ela ficava derretida quando via um bebé, ela parecia um bebé quando se cruzava com animais (aliás ela adora animais!),  para ela uma flor do campo tinha uma beleza extraordinária… quando viajavam de carro pelo campo, lá ia ela de nariz de fora – qual cachorrinho! – a cheirar o ar e a terra! Era uma delícia partilhar cada momento com ela…
«Miguelinho, cheira a vacas!... Oh, eu adoro o cheiro das vacas!» dizia ela numa ocasião. Ou então, «Querido, olha ali tantos coelhinhos! Com o rabinho branco a abanar… ah ah ah ah ah ah ah ah ah!... Tão lindinhos!».
Eram todas estas, e outras mais, experiências que faziam com que ele a amasse cada dia mais que no anterior. A simplicidade dela, a inocência dos seus pensamentos e acções para com tudo e todos, a ingenuidade que mostrava… a luz de felicidade que o seu rosto emana quando sorri, até mesmo o seu ar zangado lhe dava um toque de uma beleza sem par! Foi por esta mulher que ele se apaixonou e  mudou toda a sua vida… Pois é a boémia, tinha de parar um dia!
De facto, como diziam os amigos dele, «estás mais atinado, pá!». E sim, sentia-se um pouco mais calmo e ponderado!
E ali estava ele deitado naquele banco de pedra, em silêncio, perdido num turbilhão de pensamentos. Tinha acordado num dos tais dias em que disse para a Margarida «Nada, querida!». Mas sentiu necessidade de estar sozinho e por isso, após terem almoçado e Margarida ter adormecido, tapou-a e deixou-lhe um bilhete colado no televisor que dizia: “Volto já meu amor! Fui falar comigo!... Não te preocupes! Amo-te hoje mais do que ontem!” e saiu.
«O senhor desculpe, mas a quinta fecha dentro de meia hora!», dizia uma voz, que lhe parecia longe.
De um salto, pôs-se de pé; Tinha adormecido sem se dar conta, e já lá estava há 2 horas deitado no banco.
«Sim, desculpe… perdi-me nas horas. Mas acha que ainda posso dar um passeio pequenino?», perguntou.
«Se não se voltar a perder nas horas, tem 20 minutos, que tal?», disse-lhe o segurança com um sorriso de malandro.
E assim foi. Foi subindo até à zona que mais gostava da quinta que era o poço. Não podia fazer o percurso de descida por não ter tempo, mas foi inspirando toda aquela pureza e magia do ar e sentia a energia daquele lugar que lhe envolvia o corpo. Parecia que tinha colocado baterias novas e sentia-se pronto para voltar para junto da sua amada.
Meteu-se no carro e arrancou. Passou pela ‘Piriquita’ para comprar uns travesseiros e umas queijadinhas e disparou rumo ao seu castelo onde o esperava a sua querida! Na direcção de casa ainda teve tempo para colher umas margaridas selvagens que a sua mulher adorava.
Estacionou o carro e subiu ao primeiro andar. O coração batia-lhe a uma velocidade maluca; parecia que aquele era o seu primeiro encontro… um friozinho na barriga, as pernas a tremer, rodou a chave e entrou em casa.
«Querido, onde andou?... Estava a ficar preocupada! Passa-se alguma coisa?»
«Nada, querida! Apenas quis estar um pouco sozinho junto às minhas amigas árvores. Toma, trouxe-te um presente!... E estas flores… Vou fazer um chá… Preto ou verde?...»
Margarida olhou para as flores e disse:
«São lindas!... Vou pô-las em água.»


[i] Hermes para o seu filho Tat em “Sermão secreto da montanha”
[ii] António de Carvalho Monteiro comprou a quinta à Baronesa da Regaleira em 1892.
[iii] Cenógrafo do Teatro São Carlos e Arquitecto do Buçaco.

2 comentários:

  1. Ó Miguel, teve de pagar ingresso na Regaleira?

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  2. Caro Anónimo:
    Sim o Miguel pagou para entrar. Como, aliás, paga toda a gente.
    Se não conhece e puder deslocar-se em visita, deixo aqui o 'site' onde pode obter mais informações: www.regaleira.pt
    É um sitio que vale a pena conhecer!

    O Aprendiz da Vida

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